Blog

Você precisa perder seu tempo

Não faz muito dias, um amigo me fez essas três perguntas:

– O que você enxerga quando fecha os olhos?
– Qual o seu desejo mais profundo?
– Você prefere que a vida pare, siga ou volte?

Não pude respondê-las instantaneamente.

Ao longo daquele dia, três interrogações ficaram coçando no meu pescoço. Qual seria o embargo que impedia que eu as respondesse? Qual seria o empecilho que boicotava minha reflexão?

Sem pensar muito, eu logo soube. É o tempo. Tempo esse do relógio que me impõe o peso da sua hora, e adverte que não há brechas para debates internos, nem à meia-noite, nem ao meio-dia.

Da invenção da roda até o surgimento do cosmos virtual, o modo como o homem passou a encarar o tempo mudou radicalmente. Antes, tempo e espaço mantinham uma relação intrínseca, e a determinação do tempo levava em conta o espaço a ser percorrido. Com invenções capazes de acelerar nosso movimento no espaço, o tempo pôde, então, começar a ser controlado.

A partir do domínio sobre o tempo, o homem sente que pode vir a conquistar o espaço. O homem está agora mais veloz do que jamais esteve. Com suas ferramentas, ele ultrapassa empecilhos geográficos e vence sem muitas dificuldades qualquer distância. É perante essa perspectiva, que mais tarde ouvimos afirmar que tempo é dinheiro.

Tal alegação propagou-se em ecos que atingiram todas as gerações posteriores, imprimindo em seus espíritos a ideia de que o tempo não poderia ser desperdiçado de modo algum. E desde então, estamos nascendo, crescendo e morrendo no modo acelerado com a sensação de que, mesmo assim, sempre chegamos atrasados. Até o modo como lemos o relógio assinala essa transformação – dizemos faltar 20 minutos para as 2h, ao invés de 1h40, deste modo, já informamos ao outro quanto tempo ele ainda tem para pegar suas coisas e se mandar antes que chegue atrasado ao seu destino.

A publicidade assinala que através da velocidade ofertada pela tecnologia do mundo contemporâneo podemos chegar a qualquer lugar e ocupar qualquer posição, basta que sejamos rápidos, que fiquemos sempre um passo a frente do outro. Tal é a lógica do capitalismo: tenha pressa, pois time is money!
O sociólogo polonês, Zygmunt Bauman retrata no livro Modernidade Líquida que a concepção do domínio do homem sobre o tempo trouxe para o corpo social uma nova questão: o que posso fazer? Já que o mundo se tornou essa esfera de infinitas possibilidades, um contêiner cheio até a boca com uma quantidade incontável de oportunidades a serem exploradas ou perdidas, um bufê com tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia provar todos. – O que posso fazer? Essa tornou-se a questão central da sociedade que não permite intervalos, dos hipermodernos com seus celulares sempre conectados.

Temos programação para preencher nossas 24 horas, mas ainda assim andamos nos sentindo tristes e entediados. Para Bauman, seria pela impossibilidade da comilança absoluta que o consumidor se encontra infeliz, pelo excesso de escolhas que lhe são apresentadas mas não poderão ser totalmente experimentadas. Por isso, convivemos com o sentimento de estarmos inacabados, incompletos e subdeterminados, um estado cheio de riscos e ansiedade. Nossa angústia provém da percepção de que não estamos conseguindo aproveitar todas as ofertas. Então saímos com a boca aberta e faminta mastigando todas as promessas como exímios consumidores que nos tornamos. Então saímos com o nariz alargado, farejando o que podemos conquistar, e voltamos para casa com a sensação de que não exploramos o suficiente.

O que fazer? Ocupa hoje o lugar do antigo enigma shakespeariano O que ser?

Em seu livro, O Mal-Estar na Atualidade, o psicanalista, Joel Birman defende que os regimes de burocratização das instituições, juntamente com a racionalização das práticas sociais, têm o poder de realizar a extração do tempo do sujeito, que seguindo as regulamentações sociais perde o poder de escolher como anseia utilizar seu tempo.
Para Birman, o modo como gastamos nosso tempo está sendo pré-determinado por um sistema que não permite pausas e nos impõem um frenesi ininterrupto, que leva à prática da Gozação do Tempo, ao invés, do Gozo do tempo. O menu ofertado é tão variado que não percebemos que existem sim limites dentro do mundo globalizado: o limite ao desenvolvimento da subjetividade do sujeito, que deixa de existir singularmente ao ser ultrapassado por processos de homogeneização, processos esses que também se dão no controle sobre o que fazemos com o nosso tempo, visto que o cardápio oferecido nunca é criado mediante a opinião de quem pagará pelo pedido.
O esloveno, Slavoj Žižek, filósofo, crítico contemporâneo e cinéfilo, compartilha em seu Livro – Como Ler Lacan – alguns dos principais conceitos do psicanalista Jacques Lacan segundo a sua interpretação. Dentre os conceitos apresentados, está o Sujeito Interpassivo, o qual seria a representação do homem contemporâneo, aquele que pela impossibilidade da posição passiva, coloca um objeto para ocupar o seu lugar, sem perceber que priva a si mesmo de participar dos eventos que cercam sua vida. Ou seja: concedo ao objeto a passividade, a faculdade de gozar em meu lugar, enquanto me ocupo ativamente em outras tarefas – posso tomar providências financeiras relativas à fortuna do falecido enquanto as carpideiras pranteiam por mim. Isso nos leva à noção de falsa atividade.

De acordo com o pensamento de Zizek, guiado por Lacan, nos movimentamos o tempo todo para provar que somos donos de nosso próprio destino. Assim seguimos a recomendação capitalista e negamos o arbítrio cristão, isto é, da crença passiva na deliberação do destino pela vontade de Deus, passamos à ilusão da dinâmica compulsória, contaminados pela consciência da supervelocidade do tempo, sem perceber que o nosso apressuramento é a engrenagem que mantém a Organização funcionando.

Esse é o grande jogo. Primeiro iluda o cidadão anunciando um universo repleto de perspectivas, tantas que ele nunca conseguirá testá-las. Lembre-se: o que abastece o sistema é justamente a insatisfação do cliente. Depois, não esqueça de marcar qualquer produto com seu devido código de validade, pois isso manterá o consumidor ativo e perseguindo novidades, correndo em direção ao futuro, com medo de que o item must have da estação fuja de suas mãos, ou se torne obsoleto.

Pergunto-me se daqui poucos anos ainda teremos memória (posto que o presente hoje tem a duração de um instante e o passado parece ser uma espécie ameaçada de extinção) ou se regularemos tal função para os nossos HD´s? E que novo tempo será esse do esquecimento? Ainda existirá tempo? Ainda haverá história?
Zizek propõe como primeiro passo verdadeiramente decisivo para a mudança, retirar-se para a passividade, recusar-se a participar, abrindo o terreno para uma atividade verdadeira, para um ato que mudará efetivamente as coordenadas da cena. O que não implicaria em simplesmente ‘deixar as coisas como estão’, mas em renunciar a essa movimentação convulsiva e parar de modo a apresentar um modelo de resistência.

Estou de acordo, mesmo que possa a lei incidir sob mim ante a acusação de vadiagem. Eu realmente acredito no ócio como propulsor da criatividade e da reflexão. Com meu machado imaginário abri uma fenda no tempo. Acertei bem no meio da segunda-feira. Ela sentiu a fisgada, mas eu estava convicta e não titubeei, pelo contrário, fui ainda mais ousada, sentei no sofá e tirei os sapatos.

Retornei às perguntas do meu amigo, para respondê-las, precisei que a vida parasse, precisei fechar os olhos, precisei de tempo. ‘Perdi’ muito, muito tempo. Gastei a segunda-feira inteira. O que eu sou voltava agora a ocupar o seu devido lugar. O que eu sou tomava conta do espaço que se ampliava percorrendo novamente em simetria com o tempo.